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| Pôster do filme |
Acho que já deu para reparar que eu sou fã de terror e suspense. Sim, são meus estilos favoritos nas artes. Levei um bom tempo para ver Suspiria de 2018 por dois motivos: falta de tempo (é raro, mas acontece bastante); eu tinha visto o original de 1977 de Dario Argento e eu sempre fico com a pulga atrás da orelha quando resolvem fazer remakes. Nem preciso dizer o horror que eu tive em ver a versão norte-americana de Oldboy... Mas como tinha a Tilda Swinton no elenco, isso me encorajou a ver essa nova versão. E que bom que eu a vi.
O filme se passa na época da Guerra Fria, onde a Alemanha era separada pelo lado Oriental (Comunista) e o Ocidental (Capitalista). A Companhia de Dança Markus é para onde vai a protagonista Suzy Bannion que atende a um chamado intuitivo para este local desde muito nova. Nascida e criada numa comunidade mórmon dos EUA, Suzy parece não ter grandes dificuldades em adentrar neste grupo que tem aspectos familiares como o carinho e a secura no tratamento de algumas professoras com as suas alunas. Pelo contrário. Parece que quanto mais bizarro as cenas vão se desenvolvendo e segredos são revelados, mais Suzy vai se sentindo em casa.
Não é um grande spoiler em saber que, na verdade, a companhia é um grande coven (clã) de bruxas. Isso já fica bem claro pela estética do lugar (a estrutura grosseira, cinzenta e pesada da escola e de toda uma Alemanha separada), pela estranheza da fala, olhar e gestual das professoras e um ar de acolhimento misturado com medo das alunas que ora parece estar voltado para a escola e ora parece estar voltado para o mundo violento de guerrilha que está à sua volta. Mas o que tudo isso tem a ver com Laura Perls?
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| Coreografia Volk |
Ela era bruxa?!?!!!! Não, claro que não. Calma. Pelo menos nunca soube de ela participar de nenhum clã. Rsrrsrsrsrsrsrs. Brincadeiras à parte, uma das coisas que mais me chama atenção no filme são as cenas de dança. São hipnóticas. E é essa parte que me remete à Laura Perls. Apesar de Fritz Perls ser considerado o grande pai da Gestalt Terapia, é raro da "mãe" ter a mesma notoriedade. Mas grande parte da pesquisa de Perls se deve ao que Laura, sua esposa, pesquisou principalmente em relação ao corpo e corporeidade graças à sua formação em dança e a fenomenologia.
A fenomenologia concebe a experiência humana como ação espontânea e expressiva no mundo, produtora de sentidos e significados. "A gestalt-terapia é uma clínica da experiência na qual se visa a ampliação da capacidade de awareness a partir do corpo, que propicia uma ressignificação de si, da experiência, do mundo. Entende-se a arte como uma vivência-corpo, não como recurso; mas campo e possibilidades para uma experiência estética de si e do mundo. Na dança, o corpo se reanima, descentraliza e se movimenta para criar sentidos". *
A gestalt entende o corpo como potência, como algo indissociável da mente, um ser-no-mundo, uma forma de existência e que se apresenta fenomenologicamente através da sua corporeidade. E foi juntando esse conceito com as imagens do filme, que eu finalmente entendi o grande pavor de antigamente que se tinha com a imagem da bruxa. Uma das coisas que eu via em desenho e até em alguns filmes era de que a bruxa era uma mulher que vivia no meio da floresta (sempre na parte mais escura e estranha), uma pessoa que não podia se confiar, retratada por mulheres que dançavam nuas ao redor de uma fogueira no meio da mata. Algumas imagens eram engraçadas para mim, como as de desenhos animados, mas outras nunca me remeteram a esse bizarro. Até eu ver o filme...
Boa parte dos movimentos de dança de Suspiria de 2018 foram inspirados e adaptados da coreografia Les Meduses de Damien Jalet como é possível ver neste vídeo abaixo.
Acho estupenda a coreografia porque são movimentos simples, mas executados de uma forma enérgica, repetidas, com contratempo, com corpo vivo, que ganham significados quando expostos. O corpo das dançarinas (por mais que estejam com os seios expostos) não é objetificado nem sexualizado. Pelo contrário, existe uma coexistência entre a feminilidade, a força bruta, o prazer, a dor e a entrega. Uma mistura entre o profano e a divindade. Um corpo que não é submetido às normas sociais, mas algo que vai além e que provoca. Nisso, o diretor Luca Guadagnino soube explorar muito melhor que Dario Argento no original que ficou mais fechado num estereótipo das bruxas, perdendo as possíveis camadas dessas personagens.
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| Uma das imagens oníricas |
Uma das coisas que Laura Perls diz é que amar e viver o próprio corpo de maneira plena é uma forma de buscar uma relação autêntica consigo mesmo e de não se submeter a expectativas ou normas externas. Isso fica evidenciado nas cenas de dança com os corpos femininos que não se utilizam apenas de movimentos, mas de sons (a respiração é incorporada ao ritmo que dá mais força ao quadro poético de quem assiste ao espetáculo). Essa corporeidade transpõe a dança quando a amiga de Suzy, Sara Simms, fala sobre uma das principais professoras da companhia, Blanc: "Ela manteve a companhia viva durante a Guerra. Quando o Reich queria que as mulheres fechassem suas mentes e mantivessem os úteros abertos, lá estava Blanc".
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| O gestual corporal como comunicação |
Obviamente existem cenas do grotesco e do sobrenatural sobre as bruxas no filme (que eu gosto, mas que não tem nada a ver com o tema. É só entretenimento. Também não vou dar tanto spoiler assim). Mas o que fica mais evidente para mim, depois de ter assistido o filme é como deve ser assustador, para aqueles que querem controlar corpos e existências no espaço, ver um ser simplesmente se movimentar na sua potência e liberdade. Como a corporeidade das bruxas deve ter assustado os inquisidores católicos... fica a reflexão depois de ter visto o filme.
O quanto de controle dos corpos femininos ainda existe e não nos damos conta? O quanto a dança pode ajudar a ser um catalisador de transformação para esses corpos aprisionados e controlados por forças invisíveis ao tato, mas que são percebidas intuitivamente? A que potência um corpo feminino pode chegar quando ele se percebe livre para estar no mundo de um jeito autêntico e criativo? São essas as perguntas que ficam. Pelo menos para mim. E óbvio: marquei uma aula de dança. 💃
*Trecho retirado do artigo "DIÁLOGOS ENTRE A GESTALT-TERAPIA E A DANÇA: CORPO, EXPRESSÃO E SENTIDO" de Carla do Eirado Silva, Cíntia Siqueira de Oliveira, Mônica Botelho Alvim



