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Filme Pobres Criaturas |
Inspirada por uma sessão com uma paciente, resolvi escrever sobre esse filme que esquentou bastante o meu coração. Tem se falado muito sobre a polêmica do filme, mas geralmente, Yorgos Lanthimos tem esse efeito nas pessoas: quem gosta, ama. E quem não gosta, odeia. Eu particularmente amo. As obras que já assisti dele me fizeram sentir, me maravilharam, me afetaram, me provocaram e eu refleti e elaborei partes minhas que eu não reconhecia que estavam distantes de mim. Um processo de encontro gestáltico no cinema. E, do meu ponto de vista, o filme é sobre isso: mexer com o público.
Bella Baxter aos olhos dos outros
é uma mulher feita. Internamente, é uma criança. E como tal descobrirá o mundo
com os olhos de uma criança. O seu corpo de adulto lhe proporciona autonomia:
ela anda, passeia, entra por lugares desconhecidos, se embebeda, transa, lê,
come. Faz o que quer, quando quer, com quem quiser ou sozinha. Diferente de um
bebê que precisa de um adulto para as coisas mais básicas. Na psicologia, a relação
criança-adulto é uma das múltiplas relações que influenciam na forma como essa criança percebe o mundo e que tipo
de adulto se tornará. Bella encontra ajustamentos criativos nas situações mais
inusitadas que surgem no Aqui Agora e dá as respostas mais descabidas e
engraçadas de um infante.
Existe uma técnica de teatro
chamada Rasabox onde os sentimentos e emoções básicas são experienciadas em
alguns espaços demarcados. Existe a Rasa Hasya que em sânscrito quer dizer
alegria, deslumbre, encantamento. Também é conhecida como a Rasa da Criança, mostrando a potência deste ser. Como esta apreende o mundo. Já fomos criança um dia, logo todos nós a temos. Mas a nossa diferença para Bella Baxter é
que, apesar de ela evoluir (afinal, no final do filme, ela equipara o seu
mental com o corporal), ela não perde a sua visão sob o mundo. Mesmo quando ela
sofre por ver que o mundo não é sempre tão maravilhoso como ela achava que
fosse.
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Descobrir o mundo |
Um dos momentos tocantes do filme é quando seu pai, Godwin Baxter, recebe uma carta onde ele percebe o sofrimento da filha. God, como é chamado por Bella, compreende talvez o papel mais difícil de quem cria: o sabor agridoce de ter que deixar a sua cria se frustrar. De não dar tudo o que a cria quer e deseja. É na frustração também que Bella cresce ao reconhecer a sua angústia de ver que pessoas morrem por pobreza, que existem desigualdades no mundo e que parte disso é responsabilidade dela também. Porém, isso não a torna cínica como o personagem Harry Astley, ela escolhe fazer alguma coisa. Sua solução é infantil e traz gargalhadas ao público, mas é bonito perceber que ela não se entrega ao determinismo fatalista de “o mundo é assim e sempre será e não há nada que possamos fazer”. Quando não há movimento, tudo fica estático. E com um olhar muito terno, ela diz a Harry: “Você é um menino ferido, machucado”. Um olhar empático, de acolhimento, que Harry recebe com um sorriso. Uma criança que reconhece uma outra criança e talvez até acesse uma dor que não era exposta: a dor da impotência de não conseguir fazer o mundo do jeito que se quer. O que Bella mostra é a possiblidade de criar um mundo melhor fazendo a sua parte. Não um mundo perfeito, mas um lugar diferente do que é agora. O melhor possível.
Outra cena memorável é a cena de
dança num hotel de Lisboa. Enquanto casais dançam seguindo as regras dos
movimentos, Bella dança do seu jeito. Movimentos genuínos, autênticos e
corajosos. Aos olhos dos adultos mais rígidos, são movimentos desengonçados e estapafúrdios,
beirando o ridículo. Mas para os olhos mais atentos, ela desperta a liberdade
de dançar conforme o que se sente. E até é convidada por outros casais para
dançarem em outro lugar.
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A liberdade da dança |
Ao final da minha sessão com essa paciente, eu lhe perguntei: “como seria uma mulher conhecer o mundo com os olhos de uma criança?” ao que ela me respondeu “seria libertador”. Terminamos com a minha pergunta: “e como é ser uma mulher livre?”
O filme tem muitas camadas. Escolhi uma que eu senti que mexeu mais comigo e vi que poucas pessoas estavam falando dela. Sei que Lanthimos foca no aspecto
feminino quando toca nesse assunto, mas acho que é possível ampliar: o que nós
fazemos com a nossa criança? Como ela era? O que deixamos de ser quando viramos
adultos? Que soluções a nossa criança daria para situações adultas que estamos
vivendo hoje em dia? Seria tão estapafúrdio assim? Quando foi a última vez que
você se encantou com algo?
Deixo esses questionamentos para
você que me lê aqui. Sinta-se à vontade de compartilhar a sua experiência. Vou
ouvir com carinho, pois uma das coisas que eu reconheci é que a minha criança é
alguém que escuta de verdade o outro. 😉
Até a próxima.