O que "Men" tem a ver com relações heteronormativas violentas e introjeções femininas?


Cartaz do filme 

O filme "Men - Faces do medo" é um filme de 2022, roteirizado e dirigido por Alex Garland, o mesmo diretor de Ex-machina, Aniquilação e Guerra Civil. Conta com poucos atores, sendo os principais Jesse Buckley e Rory Kinnear. Este último se desdobrou para fazer oito personagens diferentes (pelo menos foi o que eu contei, desculpem se eu esqueci algum). O filme é considerado um folk terror por conter elementos da natureza, passar a maior parte do tempo no campo, no interior, mas algumas cenas são bem grotescas. Eu particularmente o considero como um terror surrealista e que é necessário ter estômago forte para algumas cenas. Mas por qual motivo estou falando dele?

Buckley faz a personagem Harper Harlow, uma mulher casada com James. Moram em uma cidade grande. O filme tem um roteiro que vai e volta para a cena crucial que vai explicar todo o desenrolar psicodélico que já está acontecendo: a conversa onde Harper pede o divórcio a James. Para alguns, isso pode parecer uma conversa banal e muito simples de resolver, mas não é bem assim que as coisas andam. Harper já está esgotada, diz o quanto tentou para que eles ficassem bem e juntos. James a chama de egoísta e que se o amasse mesmo não escolheria a vida dela ao invés de ficar no casamento (Será que alguma mulher já ouviu isso?). James ainda vai mais longe: diz que se ela se separar dele, ele vai cometer suicídio. Uma manipulação emocional muito intensa. A conversa vai escalando a ponto de James dar um soco em Harper e esta o expulsa de casa. Pouco tempo depois, ela vê o corpo dele caindo da janela. 

A cena crucial, tensa e indigesta

Só esse parágrafo já seria o suficiente para falarmos de relações heteronormativas violentas: Por mais que tenhamos caminhado para uma igualdade maior entre os gêneros e de nos questionarmos sobre como se dão as relações afetivas entre homens e mulheres, não podemos negar dos resquícios de um campo social onde culpabiliza a mulher pelo fim da relação, APENAS, por sinalizar que esta já acabou. Por escolher viver a sua vida e não continuar com a infelicidade. E o quanto é difícil muitas vezes para mulheres saírem de um relacionamento por não saberem como os companheiros vão reagir. E o mais impressionante é como, mesmo sabendo sobre o feminismo, sobre a luta de igualdade de gênero e de que priorizar o que faz mais sentido para si mesma é um sinal de saúde, os introjetos do campo, e de toda uma ancestralidade estão ali, no organismo desta mulher. E é esse campo social que o diretor nos mostra e nos deixa horrorizados.

Harper experimenta a tentativa de uma cura solitária no interior da Inglaterra, numa casa. O espectador percebe a partir deste momento que algo está estranho, pois todos os personagens masculinos deste lugar tem o mesmo rosto, o de Rory Kinnear. E todos tem uma fala dúbia com Harper: 

- O menino Samuel pergunta se Harper não quer brincar de esconde-esconde e quando ela nega, o menino a xinga e diz que ela não pode se esconder; 

-  Harper busca consolo pela sua confissão a um padre que acaba lhe culpando pelo o que acontecera com o marido, naturalizando a violência com a frase "às vezes, os homens batem nas mulheres"; 

- O policial libera um homem que estava nu no jardim de Harper dando pouco caso para a ansiedade e o medo da mesma. 

Rory Kinnear sendo assustador a cada personagem diferente


A ameaça à integridade e à memória de Harper é constante, o que torna o filme muito angustiante, pois em nenhum momento ela parece ter um acolhimento sincero vindo de um homem. Apenas reivindicações por atenção, por aquilo que Homens (título do filme) parecem chamar de Amor. 

O único momento em que ela é realmente ouvida é quando está conversando com outra mulher, Riley, que sempre a lembra do que é necessário para ela e de algo que Harper também já sabe: a de que ela não tem culpa pelo o que aconteceu com James. Ele é responsável pelos seus atos e não ela. Porém, o contrário é tão reforçado pelo meio, que Harper muitas vezes se questiona e carrega esse peso consigo por quase o filme inteiro. 

O filme tem uma fotografia sensacional e acredito que tenham alguns elementos que talvez façam mais sentido com psicanálise Junguiana pois percebi um simbolismo muito forte, principalmente na cena final onde o Homem Nu entra em trabalho de parto (sim, é isso mesmo que você leu) e dá a luz ao menino que xingou Harper. Segue-se uma sequência bizarra de partos, contorcionismos, dilacerações (para quem gosta de body terror é um prato cheio) até o final emblemático que mostra o cerne desta relação: um homem que pede que a mulher fique com ele, independente do que ela sente. Ele não suporta ficar só. Ele chama a SUBMISSÃO de AMOR. Quando Harper rejeita essa ideia, o Homem não suporta a rejeição e o que lhe resta é a violência que é passada de geração a geração, de homem para homem, transformando o campo em um ambiente hostil para a figura feminina.

De novo, através da metáfora pode-se fazer um comparativo com as partes alienadas de James: o menino que quer brincar com ela, se sente rejeitado quando ela não o quer, o padre moralista que a culpa por ser tão sedutora para ele, o dono da casa que diz que lhe protege, mas quando agredido (mesmo que seja sem querer) se mostra uma pessoa capaz de acabar com uma mulher. 

O filme é uma ótima experiência (Agoniante? Muito!) para entender muitas vezes a dificuldade que mulheres tem de sair de relações tão violentas, tão abusivas e o quê carregam consigo mesmo quando tem coragem de sair. O título do filme não é à toa. E nem foi traduzido para o Português. Apenas complementado. Uma bela exemplificação da frase "nem todo homem, mas sempre um homem". 

A travessia para a autonomia pode ser assustadora,
mas é compensadora.
A importância da rede de apoio.